sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Suicídio, Liberdade e Durkheim

"Acho muito injusto as pessoas não terem o direito de tirarem a própria vida"

Ouvi essa frase de uma amiga minha. Refleti sobre ela durante um bom tempo - não que seja esse meu pensamento (embora já tenha me ocorrido e ocorre com frequência tal coisa e já tentei algumas vezes). Fiquei pensando como que é extremamente injusto que nossa sociedade nos imponha (ainda que de maneira indireta) o ato de viver. Me peguei no "se": Se eu não quiser mais viver? Se eu tiver porque viver? E quem são vocês para me dizem que devo continuar vivo sendo que não me é mais interessante estar vivo? Não há sentido que se defenda a todo custo a liberdade sem que seja dada também essa liberdade. Essa imposição é uma violência à subjetividade dos indivíduos. Mais uma violência dentre outras...Durkheim tem um trabalho sobre o suicídio como fato social - esse suicídio que não é mais uma subjetividade mas também uma interferência na realidade de outrem. Ele também observava os suicídios em série, como muito se acontece nas sociedades. Para Durkheim, a causa primordial dos suicídios estaria na necessidade da liberdade face à falência das crenças tradicionais; perda da eficiência das ideias e sentimentos tradicionais irrefletidos para dirigir a conduta, sem um novo sistema de crença comumNo âmbito das pós-modernidade, vivemos um período de desreferencialização do real e dessubstancialização do sujeito. Crise de valores e mudanças. Bom e ruim. Nada. Ao mesmo tempo que se avança na tecnologia, se retrocede na valorização e no respeito (alteridade) ao outro. Até que ponto esse progresso se torna ruim? Não quero parecer conservador nem nada do tipo (até porque nem congrego com ideias retrógradas), mas estamos claramente em tempos de crise. E o que vamos fazer sobre isso? Talvez nos matarmos. É uma possibilidade.
Espero que quando eu o fizer (o que não é uma possibilidade tão impossível assim para mim; não é tão impossível para ninguém) não me julguem. Ou pelo menos tentem me entender e não me odeiem. 

Se te Queres Matar

Se te queres matar, por que não te queres matar? 
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, 
Se ousasse matar-me, também me mataria... 
Ah, se ousares, ousa! 
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas 
A que chamamos o mundo? 
A cinematografia das horas representadas 
Por atores de convenções e poses determinadas, 
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím? 
De que te serve o teu mundo interior que desconheces? 
Talvez, matando-te, o conheças finalmente... 
Talvez, acabando, comeces... 
E, de qualquer forma, se te cansa seres, 
Ah, cansa-te nobremente, 
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, 
Não saúdes como eu a morte em literatura! 

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! 
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... 
Sem ti correrá tudo sem ti. 
Talvez seja pior para outros existires que matares-te... 
Talvez peses mais durando, que deixando de durar... 

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado 
De que te chorem? 
Descansa: pouco te chorarão... 
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, 
Quando não são de coisas nossas, 
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, 
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros... 

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda 
Do mistério e da falta da tua vida falada... 
Depois o horror do caixão visível e material, 
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. 
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, 
Lamentando a pena de teres morrido, 
E tu mera causa ocasional daquela carpidação, 
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... 
Muito mais morto aqui que calculas, 
Mesmo que estejas muito mais vivo além... 
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, 
E depois o princípio da morte da tua memória. 
Há primeiro em todos um alívio 
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... 
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, 
E a vida de todos os dias retoma o seu dia... 

Depois, lentamente esqueceste. 
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: 
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. 
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. 
Duas vezes no ano pensam em ti. 
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, 
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti. 

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... 
Se queres matar-te, mata-te... 
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ... 
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida? 

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera 
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor? 

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? 
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem. 
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes. 
És tudo para ti, porque para ti és o universo, 
E o próprio universo e os outros 
Satélites da tua subjetividade objetiva. 
És importante para ti porque só tu és importante para ti. 
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? 

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? 
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, 
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial? 

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? 
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente, 
Torna-te parte carnal da terra e das coisas! 
Dispersa-te, sistema físico-químico 
De células noturnamente conscientes 
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos, 
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências, 
Pela relva e a erva da proliferação dos seres, 
Pela névoa atômica das coisas, 
Pelas paredes turbihonantes 
Do vácuo dinâmico do mundo... 


Álvaro de Campos, in "Poemas" 

Heterónimo de Fernando Pessoa


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