terça-feira, 28 de outubro de 2014

Isso é pra viver momentos únicos. (Otto)


"Isso é pra morrer
6 minutos
Instantes acabam a eternidade
Isso é pra viver
Momentos únicos
Bem junto na cama de um quarto de hotel"


Até pra morrer, você precisa existir. 

Concerto Para Corpo e Alma, Rubem Alves










Quem sou eu?
Sei que eu sou muitos. Quem me ensinou isso foi um Demônio velho, o mesmo que ensinou psicologia a Jesus. Quando Jesus lhe perguntou “Qual é o teu nome?”, ele respondeu, numa mistura de verdade e gozação: “Meu nome é Legião porque somos.” Coisa maluca: o “eu”, singular na gramática, é plural na psicologia.
Eu sou muitos. Tem-se a impressão de que se trata da mesma pessoa porque o corpo é o mesmo. De fato o corpo é o mesmo. Mas os “eus” que moram nele são muitos.
Sabemos que são muitos por causa da música que cada um toca. A letra não importa. Pode até ser que a letra seja a mesma. O que faz a diferença é a música. Cada “eu” toca uma música diferente: oboé, violino, tímpano, prato, trombone. Juntos poderiam forma uma orquestra. Não formam. Cada “eu” toca o que lhe dá na telha. Como no filme Ensaio de Orquestra. Esqueci-me do nome do diretor: terá sido Fellini? Merece ser visto.
Por vezes os “eus” se odeiam. Muitos suicídios poderiam ser explicados como assassinatos: um “eu” não gosta da música do outro e o mata. Foi o caso de um meu primo. Quando tínhamos sete anos de idade e brincávamos de soldadinhos de chumbo, ele já estava fazendo um dicionário comparativo de quatro línguas: português, inglês, francês e alemão. Quando tirava 98 na prova ele batia com a mão na testa e dizia, arrasado: “Fracassei”. O “eu” que batia na testa era o “eu” que não suportava não ser perfeito. O “eu” que levava o tapa na testa era o eu que não havia conseguido tirar 100 na prova. Um dia o primeiro “eu” se cansou de dar tapas na testa do segundo “eu”. Adotou uma medida definitiva. Obrigou-o a lançar-se pela janela do 17° andar.
O português correto diz: “Eu sou”. Sujeito singular; verbo no singular. Mas quem aprendeu com Sócrates, quem se conhece a si mesmo, sabe que a alma não coincide com a gramática. A alma diz: “Eu somos”. E diz bem. Pergunto-me: “Qual dos muitos ‘eus’ eu sou?”
Albert Camus declara, no seu livro O homem em revolta, que o homem é o único ser que se recusa a ser o que ele é. Essa afirmação encontra uma ilustração perfeita num incidente banal, descrito por Barthes no seu livro A câmara clara.
A partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva da câmara fotográfica, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseando-me antecipadamente em imagem.
Olho para a foto. Sofro. O fotógrafo me pegou distraído. Não saí bem. Não me reconheço naquela imagem. Sou muito mais bonito. Sofro mais ainda quando os amigos confirmam: “Como você saiu bem!” O que eles disseram é que sou daquele jeito mesmo. Não posso reclamar do fotógrafo. Reclamo do meu próprio corpo. Recuso-me a ser daquele jeito. É preciso ficar atento. Que não me fotografem desprevenido. Se me perceber sendo fotografado, farei pose. A pose é o sutil movimento que faço com o corpo no intuito de fazê-lo coincidir com a escorregadia imagem que amo e que me escapa. A imagem que amo está fora do corpo. Recuso-me a ser a minha imagem desprevenida. É preciso o movimento da pose para coincidir com ela. Quero ser uma imagem bela.
O mito de Narciso conta a verdade sobre os homens. Narciso aceitou morrer para não se separar da bela imagem sua. Aquele que, como Narciso, vive a coincidência da imagem real com a imagem amada não precisa fazer pose. Está pronto para morrer. A morte eternaliza a imagem.
Dizem os religiosos que a existência humana se justifica moralmente. Deus deseja que sejamos bons. Discordo. A existência humana se justifica esteticamente. Somos destinados à beleza. Deus, Criador, buscou em primeiro lugar a beleza. O Paraíso é a consumação da beleza. Deus olhava para o jardim e se alegrava: era belo! No Paraíso não havia ética ou moral. Só havia estética. Os santos que a Igreja canonizou por causa da sua bondade eram movidos pelo desejo de que, por sua bondade, Deus os achasse belos. A beleza gera a bondade. Quando nos sentimos feios somos possuídos pela inveja e por desejos de vingança. Invejosos e vingadores são pessoas que sofrem por se sentirem feias.
Beleza não é coisa física. Não pode ser fotografada. É a música que sai do corpo. Nisso somos iguais aos poemas. Um poema, segundo Fernando Pessoa, são palavras por cujos interstícios se ouve uma melodia tão bela que faz chorar. A beleza do poema não se encontra naquilo que ele é mas, precisamente, naquilo que ele não é: o não-dito onde a música nasce.
De todos os “eus”, qual deles eu sou? Eu sou o rosto belo. É esse que eu amo – precisamente o que escorrega e tento capturá-lo na pose! Porque esse é o “eu” que eu amo, esse é o “eu” que o meu amor elege como meu verdadeiro “eu”. Os outros “eus” são intrusos, demônios que me habitam e que também dizem “eu” E ainda há quem duvide da existência dos demônios! Como duvidar? Se eles moram em mim, se apossam do meu corpo e me fazem feio – mau! Se, nos momentos em que se apossam do meu rosto, eu visse minha imagem refletida num espelho, talvez morresse de horror ou quebrasse o espelho.
(...)
Brigas de casais são exercícios de memória. Dizem que estão brigando por isso ou por aquilo. Mentira. Brigam sempre pelos rastos. Invocam os rastos, aquilo que fui ontem para destruir o belo rosto que amo. Não adianta que hoje eu seja uma ave. “Você me diz que é uma ave? Mas esses rastos me dizem que ontem você foi um macaco… Sua pose não me engana…”
Perdoar é esquecer. Deus é esquecimento. Quando ele perdoa os rastos desaparecem. Perdoar é apagar da memória o rasto/rosto deformado de ontem.
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
“Te conheço…” – diz um para o outro. “Minha memória diz quem tu és. Te conheço – nunca te verei pela primeira vez. Teu rosto, eu o conheço como a soma dos teus rastos…” Aqui termina uma estória de amor porque o amor só sobrevive onde há o perdão do esquecimento.
Somos Narciso. Estamos à procura de olhos nos quais nossa imagem bela apareça refletida. Queremos ser belos. Se formos belos, seremos bons.
Concerto Para Corpo e Alma, Rubem Alves

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O amor e o medo são pontas de facas.


O que dirá o mundo sobre as cidades?
Eu até estarei, reconheço a cidade
Em cada rua uma dor
Em cada dor, desabafo
Em cada corpo que eu acho eu trafego comigo
Eu lhe peço um abrigo
Eu divido contigo minha angústia e o meu pão
Eu divido contigo minha angústia e o meu pão
Buraco negro, elevadores, ela não sabe
Não há mais vagas
Olha as raízes dos postes de luz
E a concretagem das novas colunas
Becos e praças são feitos para as desgraças
O amor e o medo são pontas de facas
Mas não espere, não, pegue na contramão
E vai juntando as vidas perdidas
Mas não demore, não, pegue na contramão
E toque as filhas perdidas, perdidas
As filhas, as filhas
Onde começa, ela não sabe
O sol da laje, lembro do mar
Levantamento das quadras armadas
Quero você para sempre esta noite
Becos e praças são feitos para as desgraças
O amor e o medo são pontas de facas

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

estar sozinho


quando você pensa em quantas vezes
tudo dá errado
você começa a olhar para as paredes
e permanece lá dentro
porque as ruas são o
mesmo filme antigo
e todos os heróis acabam como
o velho herói do filme:
bunda gorda, cara gorda e o cérebro
de um lagarto.

não é de admirar que
um homem sábio irá
escalar uma montanha de 10.000 pés
e sentar-se lá esperando
e vivendo de baga de arbusto
em vez de apostar em duas covinhas dos joelhos
que certamente não vão durar a vida inteira
e 2 em cada 3 vezes
não sobreviverá por uma noite.
montanhas são difíceis de escalar.
as paredes são suas amigas.
conheça suas paredes.
o que eles nos deram lá fora
é algo que mesmo as crianças
se cansaram.
Permaneça com suas paredes.
elas são o amor mais verdadeiro.
construa onde ninguém constrói.
é o último caminho que resta.




You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense, Bukowski