sexta-feira, 21 de novembro de 2014

wilson


*graciosamente roubado do meu amigo Wilson* 







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A minha misandria me afastou
da possibilidade de transição
de gênero por todos esses anos.

Nada é certo ainda. Venho conversando com minha mãe sobre a possibilidade de transição há um bom tempo. No começo, ela negou veementemente a possibilidade, e disse que eu estava "confusa devido a uma insatisfação pessoal", mas que isso nada tinha a ver com transexualidade. Eu concordei. Mas não é a primeira vez que eu concordo com explicações convexas sobre minha identidade de gênero. Então eu resolvi fazer uma recapitulação de tudo.

Eu nunca fui super dyke. Na verdade, acho isso feio em mim. Mas também nunca fui nem um pouco "feminina". Minha própria mãe diz que, assim que aprendi a andar, ela olhava pra mim e pensava "É um menino todo...". E desde então as explicações apaziguadoras foram sempre presentes.

Começou com genética e fisiotipo. "Muitas mulheres são machonas, e isso não as faz lésbicas" (na época ainda não tínhamos consciência a respeito da transexualidade). "A família do seu pai tem esse jeitão 'jocoso', é genético". Os esforços de contrapartidas também não eram poucos: "Você pode tentar pelo menos 'se arrumar' mais". Depois, na adolescência, veio a sexualidade (paralela a um reforço do "jeito masculino", re-reforçado por uma indumentária andrógina). Minha mãe tentava, mais uma vez, ajudar: "Olha, se você gosta de meninas, lembre-se que lésbicas gostam também de meninas. Nenhuma vai se interessar por você se você parecer um menino". Mais recentemente, quando finalmente demonstrei interesse pela temática transgênero, minha mãe rebateu: "Você está insatisfeita com seu corpo, e está levando isso para o âmbito errado. Se você 'se cuidasse' (emagrecesse, malhasse), não sentiria isso, pois teria autoestima elevada".

Minha mãe sempre quis ajudar. Nada disso ela fazia por mal. Pelo contrário: dentro do pouco conhecimento que ela tinha a respeito, tentava me ajudar a sair das crises. E eu sempre dei ouvidos por não conhecer outras alternativas. Lutei boa parte da minha juventude contra minha "falta de jeito para a feminilidade", alternando entre fases de esforço para parecer "bonita" (leia-se: feminina) e fases, bem mais longas, de conformismo com minha falta de afinidade com esse mundo.

Lembro que desde pequena eu queria ser menino. Simples assim. Queria andar sem camisa. Não queria vestidos. Mais velho, a ideia de engravidar passou a me causar repulsa e pânico. Menstruação passou a ser uma tortura devastadora. Além disso, minha sensação ao vestir roupas femininas sempre foi a mesma: travestimento. No espelho, parecia bonito, mas no corpo me incomodava, causava estranhamento. Pior: ser reconhecido por isso me deprimia. As pessoas achavam bonito, diziam que eu devia me vestir assim sempre, e isso só me causava mais repulsa. Já quando eu visto roupas masculinas, é o oposto: me sinto bem. Me dá segurança. Mas quando olho no espelho... a imagem está completamente desconexa. Vejo uma dyke visualmente desagradável.

Um tempo atrás, eu havia "decidido" que eu era uma pessoa "nogender". Queria construir, a partir de então, um guarda-roupas andrógino, que me deixasse confortável em ambos os patamares. Passei a me vestir de uma maneira slim e flat, com camisetas de manga comprida de malha fina, calças jeans fit e meus clássicos converses neutros. Mas sabe quando a coisa ainda assim não lhe agrada?

Não sou uma pessoa expansivamente masculina nem feminina, de modo geral. Sou uma pessoa polida, neutra (ou pelo menos tento), e por isso talvez as pessoas não me vejam como um machão eminente (e realmente não sou); mas tampouco me vêem como uma menininha. Mas eu nunca havia pensado em disassociar "indumentária", "performance" e "corpo". Então um amigo trans me fez uma pergunta crucial: "Você está de bem com o seu corpo, tem vergonha dele?". Na mesma hora eu respondi "Não, eu sou de boa". Quando eu respondi isso, levei em consideração a experiência de outros transsexuais que não conseguiam sequer fazer sexo porque não conseguiam expor seus corpos. Eu consigo. Fico sem roupas na frente dos outros, deixo que me toquem. Mas esqueci de levam em consideração o que eu sinto. Foi então que passei a observar. Sim, eu deixo que me toquem, porque acho importante, MAS NÃO GOSTO. Não gosto que me olhem, não gosto de ter meu corpo reconhecido como sexualmente feminino, não gosto de "ser passiva". E tudo isso eu sempre ignorei sob a névoa da "baixa autoestima".

Então, essa semana, depois de muito pensar no que "não sou" e "não gosto", passei a fazer um exercício que nunca fiz antes: E SE? E se eu tivesse um corpo masculino? E se eu fosse reconhecido como homem, visualmente e socialmente? Como eu me sentiria? Me arrependo por nunca ter feito esse teste antes. Na verdade, a minha extrema misandria me afastou da possibilidade de transição de gênero por todos esses anos. Nunca estive satisfeito como mulher, mas sempre me causou repulsa a figura masculina socialmente vigente. Foi necessário que eu conhecesse homens maravilhosos - feministas, polissexuais, transgêneros - para que eu pudesse finalmente reconhecer que é possível sim ser um homem não-opressor, que contribui para a visibilidade das minorias e que não reproduz as atitudes do patriarcado e do machismo.

Sinceramente? Eu não deixo de considerar que minha mãe possa estar certa - que tudo isso não passe de baixa autoestima mal direcionada. Mas quando penso nisso, sinto muita frustração. De qualquer forma, tenho um longo caminho de autodescoberta pela frente. Não sou o clássico caso de transhomem que viveu em depressão boa parte da vida por não se sentir adequado e sempre teve convicção de que estava no corpo errado. Pra mim, tudo sempre foi meio anestesiado, desleixado, passivo e paliativo. Nunca me forcei a pensar muito a respeito simplesmente por achar que tudo isso era um processo complicado e sofrido demais pra eu ter que passar. Minha cabeça pessimista sempre levou em consideração as dificuldades que viriam com enfrentamento familiar e social, as rotinas médicas, as cirurgias desagradáveis. Mas a partir de hoje, meu exercício diário será apenas: e se? Vamos ver até onde minha mente vai.

P.S.: Para todos os efeitos, estou iniciando um processo de androginização do corpo, com emagrecimento (perda de "curvas") através de alguns esportes e regulação alimentar. E seguirei de boa em busca de algum autoconhecimento.  

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